A cidade sitiada faz parte do conjunto de três romances que Clarice escreveu antes de completar 30 anos. O primeiro, Perto do coração selvagem, foi lançado no ano em que ela se casou, 1943, o terceiro, no ano em que teve o primeiro filho, 1949. Escrita e gravidez correram em paralelo e, como Clarice relatou em carta a irmã, Tania, quando terminei o ultimo capitulo, fui para o hospital dar a luz o menino .Esse detalhe intimo poderia ser supérfluo caso A cidade sitiada não estivesse tão completamente entrelaçado com a vida da autora, que padecia em Berna, a mesma solidão vazia e a mesma angustiosa melancolia que sua personagem, Lucrécia Neves, sofria no subúrbio de São Geraldo. Em outra carta, Clarice afirmou: E ruim estar fora da terra onde a gente se criou, e horrível ouvir ao redor da gente línguas estrangeiras, tudo parece sem raiz; o motivo maior das coisas nunca se mostra a um estrangeiro, e os moradores de um lugar também nos encaram como pessoas gratuitas. Foi esse sentimento de absoluto não pertencimento, de total estranhamento e mutua desconfiança que Clarice transpôs para Lucrécia, fazendo-a tão sem graça quanto as jovens suíças, de cara seria, sem vaidade , que só conseguem ser engraçadinhas no verão . Da mesma forma que ela metamorfoseou a bela, encantadora e quase milenar capital suíça, tombada pela Unesco, no feio, desolado, insipido e atrasado subúrbio de São Geraldo, predestinado a se tornar ainda pior a medida que o progresso o vai desfigurando ao final da narrativa. Lucrécia é uma mulher mais inteligente e ambiciosa do que todos aqueles que a cercam, uma forca da natureza que não aceita ser sitiada e asfixiada pela mediocridade imperante. E, como bem observou a escritora Rachel Gutierrez: Este livro, que Santiago Dantas considerou denso e fechado , e um ponto de mutação, que já anuncia na obra de Clarice Lispector a extraordinária liberdade criativa de Laços de família e de A maca no escuro. (Rocco)